quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Mulher que mandou matar o pai que a abusou desde os 9 anos é absolvida


Severina Maria sofreu abusos desde os 9 anos, teve 12 filhos com o pai e confessou assassinato dele, mas foi absolvida. Imagem: Laís Telles/Esp. DP/D.A press

Um abraço emocionado com quatro dos cinco filhos selou, no início da tarde desta quinta-feira, o novo destino da agricultora caruaruense de Severina Maria da Silva, 44 anos. A sentença de absolvição que a livrou da condenação pela morte do próprio pai, Severino Pedro de Andrade, apontado como autor de abusos sexuais cometidos contra ela por 28 anos, virou mais uma página da dolororida história de vida da mulher e pôs fim ao polêmico julgamento, que envolveu ordens de prisão e até um desaforamento a pedido do Ministério Público. Apesar de confessar publicamente e durante a sessão ser a autora intelectual do crime, Severina foi isentada pelo júri da acusação. “Só quero voltar para minha casa, com meus filhos, e poder trabalhar", desabafou ao saber da sentença.
Estuprada desde os nove anos pelo próprio pai, com quem teve doze filhos, Severina repetiu para os jurados as atrocidades de que foi vítima durante os 28 anos de abusos e admitiu que, diante do temor do estupro de suas filhas, ao mesmo tempo filhas e netas do agressor, resolveu mandar matar o pai.
Por quase três décadas, a agricultora foi obrigada pelo genitor a viver maritalmente com ele. As agressões sexuais começaram aos 9 anos, com conivência da mãe da garota. Aos 15 anos, Severina teve o primeiro de 12 filhos, a maioria morta em decorrência de problemas genéticos, da falta de acompanhamento médico e em decorrência das agressões físicas praticadas pelo pai-avô dos bebês. Apenas cinco das crianças, hoje com idades entre 12 e 19 anos, sobreviveram.
Por 28 anos, de acordo com o relato feito ao júri - formado por três homens e quatro mulheres -, Severina foi subjulgada e abusada, com o conhecimento da família.  Em 2005, quando Severino ameaçou abusar uma das filhas-netas, de 11 anos, Severina resolveu mandar matá-lo. A morte foi encomendada a dois conhecidos da agricultora ao preço de R$ 800. Os executores do crime, Edilson Francisco de Amorim e Denisar dos Santos foram condenados e cumprem pena em Caruaru.
Durante a acusação, o promotor do Ministério Público de Pernambuco, José Edvaldo da Silva, surpreendeu os presentes ao júri pedindo a absolvição da ré. Para ele, a acusada foi vítima de coação moral irresistível. E foi além: "O Estado não poderia exigir que a forma encontrada por ela para se defender fosse outra, ainda que envolvendo violência", defendeu, contrariando a posição inicialmente adotada pelo MPPE, que solicitou o desaforamento do júri de Caruaru para o Recife alegando suspeita sobre a imparcialidadedo corpo de jurados.
“Eu não poderia, nem teria condições éticas, de pedir a condenação desta mulher quando não se poderia exigir dela outra conduta e quando ela deveria era ser indenizada pelo Estado”, ponderou o promotor, evidenciando o fato de que, entre sucessivos estupros e agressões físicas e psicológicas, Severina foi, de fato, vítima de mais de 5 mil crimes não julgados ou investigados.
O argumento, o mesmo utilizado pela defesa da acusada, foi reforçado pelo fato de Severina já ter procurado as delegacias de Caruaru e Brejo da Madre de Deus cinco vezes na tentativa de denunciar as agressões, todas sem sucesso. De acordo com um dos advogados de defesa, Gilvan Florêncio, a decisão será analisada pelos advogados para verificar a possibilidade de Severina iniciar um novo processo, dessa vez contra o Estado, para pleitear o pagamento de indenização pelos danos sofridos, mesmo após seguidas tentativas de conseguir proteção policial.
Ao receber o resultado do júri popular, no entanto, Severina não pensou em dinheiro. Logo após ser informada da absolvição, a agricultora agradeceu a Deus pelo fim do pesadelo que a seguiu durante e após anos de abuso. Por conta da morte do pai, Severina ficou um ano e seis dias detida na antiga Colônia Penal Feminina de Garanhuns. Os estupros, o tempo de prisão e a espera pelo julgamento consumiram 35 anos de sua vida. "Se Deus quiser, minha mãe vai querer voltar a falar comigo e eu vou esperar por ela. Acreditava que me considerariam inocente, mas você tem que estar preparada para tudo, então tinha medo, mas a vida vai ser diferente daqui para frente”, resumiu.

“Ela não queria que a história dela se repetisse na filha”
Além da própria Severina, apenas a tia dela, irmã do pai da acusada, foi ouvida como testemunha do caso. Otília Maria da Conceição, de 86 anos, revelou que a situação à qual a sobrinha foi submetida por quase três décadas era conhecida por familiares e vizinhos, mas que não havia possibilidade de denúncias formais contra Severino. “Ele era muito bruto. Tínhamos medo dele bater ou matar a gente. Ele já batia bastante nela desde cedo”, lembrou.
O crime chamou a atenção da população caruaruense e envolveu faculdades de direito e organizações não governamentais que passaram a interceder por Severina. Por conta da comoção social, o caso foi desaforado a pedido do Ministério Público sob o argumento de que a imparcialidade do júri poderia ser comprometido. Assim, a ação foi julgada no Recife, em vez do procedimento normal, quando julga-se o caso na cidade em que o crime é cometido.
Representante do Centro de Referência da Mulher, a psicóloga Wedja Martins, acompanhou a acusada nas duas cidades, oferecendo suporte para a família durante o processo. “Ninguém é mais vítima nessa história do que a própria Severina, que já tinha um passado de sucessivas tentativas de fuga de casa e suicídio. A situação de vulnerabilidade só mudou quando ela percebeu a aproximação do pai com sua filha e ela não queria que a história dela se repetisse”, explica.
Por Ed Wanderley.  DIÁRIO DE PE

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