FOTO: Felipe Ribeiro |
“Eu já bebia muito. Mas com essa pandemia e a coisa de ter que ficar isolada em casa, eu passei a beber muito mais. Comecei a beber a qualquer hora. Durante o dia ou à noite.” Em tempos de isolamento social, a fala de uma dona de casa, 53 anos, moradora do Recife, soa como um alerta. Só entre os dias 6 e 28 do mês passado, 93 pessoas acessaram o serviço voluntário Alcoólicos Anônimos pela primeira vez no Estado. A dona de casa foi uma delas. “Sentia medo, solidão, angústia, uma incerteza diante do amanhã. Foi quando eu vi o número do AA na televisão e resolvi ligar para pedir ajuda”, diz, sob a condição do anonimato. A pandemia do novo coronavírus e toda a enxurrada de indefinições que ela produz tornou-se um perigoso gatilho para o consumo de bebidas alcoólicas dentro de casa. E é justamente no atendimento, feito na ponta, que esse aumento se observa de forma mais expressiva.
Não são só os novos contatos que estão chegando à procura de ajuda no AA. Cresce também o número de usuários reincidentes, que relatam recaídas e a dificuldade de ficar longe da bebida, num ambiente de ansiedade, sem contato físico com familiares e amigos, mas, principalmente, sem saber quando tudo isso vai passar. “Muitos membros, que já não faziam mais parte do grupo, estão voltando, procurando as reuniões onlines. É perceptível também o aumento do consumo de álcool entre as mulheres e a maior presença delas nas salas virtuais”, confirma Camila Ribeiro de Sene, presidente nacional do AA. Na home dos Alcoólicos Anônimos, o canal de ajuda do site recebia, antes da pandemia, uma média de seis emails diários. Agora, são 15, por dia.
Por conta do risco de contaminação, todas as reuniões presenciais foram suspensas e o serviço continua à distância, usando diversas ferramentas tecnológicas. No período entre 30 de março e 27 de abril, foram realizadas mais de 2 mil reuniões online do AA no País, com uma média de 12.500 participantes. “Isso considerando apenas as reuniões organizadas a partir do nosso site. Não inclui os inúmeros grupos de WhatsApp criados em todos os Estados para que as pessoas continuem se comunicando e buscando ajuda contra a dependência”, explica Camila. Só em Pernambuco já se formaram no WhatsApp 21 grupos de recuperação e voltados a discutir temáticas relacionadas ao consumo exagerado de álcool. Há grupos com mais de 150 participantes.
Beber demais em casa tem provocado também um aumento nos atendimentos em clínicas para tratamento de dependentes químicos. O psiquiatra Marcelo Machado, diretor-médico da Clínica Hospitalar Elo, localizada em Gravatá, no Agreste do Estado, afirma que, nos últimos 45 dias, houve um crescimento de 30% no número de internações por alcoolismo.
Ele chama atenção para os riscos que o uso excessivo do álcool provoca não só no organismo do usuário, mas no comportamento que o dependente adota diante da doença. “Ele perde a noção de prevenção. Ao precisar sair de casa para beber, termina expondo a ele e aos parentes ao risco de contaminação. Essa tem sido uma preocupação recorrente das famílias que têm procurado a clínica durante a pandemia. O internamento é uma alternativa não só para tratar a dependência, mas também para proteger o paciente à exposição do vírus”, explica Marcelo Machado.
IMUNIDADE BAIXA
O médico lembra que o consumo excessivo de álcool reduz a imunidade do organismo e deixa o corpo mais vulnerável ao risco de contaminação pela covid. Outro aspecto ressaltado pelo psiquiatra é a questão da obesidade. “O álcool só produz calorias vazias. A bebida contribui para o acúmulo de gordura no corpo. Isso fica ainda mais complicado quando associado ao sedentarismo, já que a realização de exercícios físicos está limitada, diante da impossibilidade de sair de casa”, pontua. Segundo Marcelo, a maior parte das internações feitas na clínica durante o período de isolamento social tem sido de forma involuntária. “A maioria dos usuários não se dá conta do uso excessivo do álcool e nem acha que corre um risco maior de contaminação.”
Embora ainda não haja estudos científicos sobre o comportamento da população em relação ao álcool nesse momento de pandemia, o psiquiatra Arthur Guerra, presidente-executivo do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa), diz que o ambiente, de fato, é favorável ao crescimento do consumo. “O cenário é preocupante. O confinamento pode despertar ou agravar quadros de depressão e ansiedade que levam algumas pessoas a buscarem no álcool um alívio para essas situações. O problema é que, após os efeitos relaxantes da bebida, a consequência pode ser muito mais nociva. Por estar emocionalmente vulnerável, o usuário tem maiores chances de desenvolver uma dependência”, alerta.
Mesmo com o crescimento do consumo individual, em casa, o mercado registra uma queda na produção de bebidas alcoólicas no País. É uma questão de escala. “Por mais que tenha aumentado essa demanda caseira, ela não tem representatividade nas vendas porque a desproporção é muito grande. Antes vendíamos para supermercados, bares, restaurantes, hotéis, grandes eventos. Desses pontos, apenas os supermercados continuam abertos”, afirma Eduardo Debron, diretor comercial da Cervejaria DeBron Bier, uma das líderes no mercado de cervejas artesanais produzidas em Pernambuco. A redução no faturamento da empresa, segundo ele, foi de 90%, em função da pandemia. O encolhimento também foi registrado pela Associação Brasileira de Bebidas (Abrabe), que reúne fabricantes de destilados, cachaça, cerveja e vinho. As vendas de bebidas alcoólicas no Brasil caíram, em média, 52%, no período de 15 a 31 de março, comparado ao mesmo intervalo do ano passado.Do JC
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